quinta-feira, setembro 11, 2014

torpor

corpo crispado
desejo contido
acidez na boca
vômito amarelado
quando de dentro de mim chegaste
esta angústia pálida e tesa, me embrenhaste
em uma floresta úmida tropical
nem era dia, noite tensa que embaralha fadas e jardins
de repente me vi assim em posição uterina
sem saber para onde ia, já indo
segurei o teu antebraço e me perdi de mim
enganada e bêbada por uma louca trepada
esbofeteada pela vida oblíqua dos amantes tortos
ensimesmados

desembestar

pilha de nervos sobre a escrivaninha abafados solenes pelos livros de poesias, muralhas que fecham meu corpo portão de ferro, fico um tempo assim, imóvel, sem respirar, feito pedra esperando o mar, a maré saltar em ondas frescas para me desembestar.

ela mesma.

neste dia ela saiu cedo, acordou  e se espreguiçando muito menos do que o usual, deu de cara com os sapatos verdes ao lado da cama, jogados ali no meio da noite mal dormida. ela não poderia supor tudo o que encontraria no dia em que começava, afinal nunca se sabe, não é, o que vamos encontrar, no que vamos tropeçar ou encontrar. olhou no espelho o rosto e as olheiras. não tinha o que fazer depois de ter dormido menos de 4 horas, elas eram irremovíveis debaixo dos seus olhos. tomou uma ducha, vestiu uma camisa bem leve, uma calça jeans. pegou a bolsa, os óculos de sol e penteou os cabelos lisos. saiu e o ar era agradável, cheiro de manhã, pássaros cantando e sol brilhando já. na sua frente um pelotão do exército fazia a sua ginástica matinal: 1,2,3 salve o Brasil! ela seguia com um pouco de pressa feliz de não ter bebido pelo menos. se o tivesse feito, tudo agora seria pior. chegou no trabalho e as horas passaram rápido, um projeto para um restaurante árabe e uma casa na praia era ao que ela se dedicava no momento. até que já era quase meio-dia, o sol se levantando impiedosamente para a sua pele branca, toca a campainha. ela foi abrir e era o porteiro: encomenda para Silvia. sim era ela mesma.

pântano hoje

aquele lugar de paredes de tempo parado, de marcas e manchas por todo o lado me faz ter enjôos, aglomerações no estômago. como presentificar o passado? será pela palavra? será pelo texto ou será pelo corpo de sensação, pelas orgias da respiração fraca aqui de dentro. minha respiração não flui como eu gostaria, ver a professora ali não me produz uma sensação de conforto, muito pelo contrário é de dor, é de trauma mesmo, de algo que por algum motivo não vingou, não saiu da zona de convalescer-se e entortar-se inteiro. as costas são uma concha, a espinha não mais ereta precisa de apoio, de outros corpos? o que seria o meu corpo ali? um corpo de outros? é o meu próprio corpo dentro de um hospício! eu que tanto o critiquei me vejo ali, assentada sobre aquela cadeira bamba, envelhecida e cheia de histórias macabras. não são fantasias não, aconteceram as piores violações ao corpo que se pode imaginar ali, naquela sala horrorosa, e eu ali? e eu? posso acionar algo aqui? nesta espécie de lugar insalubre, que cria e cultiva a doença, que a alimenta por todos os lados. saio antes do fim e sou um emaranhado, um pântano hoje.

segunda-feira, setembro 01, 2014

pouca água

quantos arroubos de microrganismos tenho por dentro? me saiu uma mancha ao lado da orelha, as extremidades dos olhos avermelham-se, coçam e os espirros intensificam-se à noite. enquanto a cidade silencia eu estou desperta. convicta da infinidade de vida aqui a minha volta. vida e morte. gente nascendo e morrendo. bichos uivando, outros mamando. células que se multiplicam quando recebem mais vitaminas. menos parasitas. o meu corpo emaranhado de vida, de sopros cósmicos e químicos ganha novos contornos no inverno, adensa-se e empalidece quando menstrua e está alérgico, inchado e com humor duvidoso. penso mais do que deveria. sem vinho e pouca água.

da suíte dos fundos

nos encontramos na varanda da suíte dos fundos da casa principal. e tu me disse, com as mãos no meu pescoço: que pena que já não tenho tempo para delongadamente beijar-te os ombros. e, no intervalo de tempo em que eu fechei os olhos para ouvir-te e os abri para dizer-te também, já te vi andando determinada rápida atravessando o jardim pelo caminho de pedras. o sol estava a pino e eu falei em voz alta o que não querias ouvir: que pena que o teu tempo não é mais teu!

pesadume

o dia estava abafado. dia de outono em que tudo indica que vai cair uma chuva no final mas ela não cai e fica mais e mais abafado, nuvens pesadas, pesados humores. eu saí de casa ainda com uma leve dor de cabeça insistente... devia ser das quatro taças de vinho que havia tomado no almoço em família. esqueci de dizer que trata-se de um domingo também abafado no íntimo. noite chegou nada de chuva e sim mais pesadume. pesar? sozinha em casa, cansei da solidão e fui pedalar. pedalei até o boêmio bairro da cidade. encontrei homens caídos pela rua e não deu pra saber se tratavam-se daqueles que decidiram viver na rua, ou se tomaram tanta cachaça e sem nenhuma condição de levantar dali. encontrei alguns amigos bebendo em uma bar. não quis ficar. o cheiro do cigarro e a cerveja depois da ressaca do vinho definitivamente me nocauteriam acelerando ainda mais o processo alergicorespiratório que me acompanha de tempos em tempos pelo excesso de fumaça e mudanças bruscas de temperatura. preferi seguir pedalando, aliás muitas vezes prefiro! segui encontrando pessoas bêbadas. um casal que discutia. um que falava sozinho. um grupo animado de jovenzinhos que gritava... é impressionante como em alguns dias o olho não vê a diferença, parece que se vicia no mesmo, na mesmice, na padronagem. quando é assim, quando cola uma imagem em mim, prefiro me retirar e ficar aqui comigo mesma no meu canto. de volta em casa, olhei pela janela e o meu olhar se sacudiu, vibrou: na parada de ônibus aqui de baixo vi ela e ele. ela uma garota ruiva de cabelos crespos e curtos. ele moreno de moleton, barba e chinelos. ela mexia no rosto dele com a mão, parecia querer que a sua mão tapasse todo o rosto dele, todas as expressões dele. todos os padrões dele. pegava com vontade, forte, massageando tudo: olhos, boca, nariz, bochechas e orelhas. ele se jogava pra trás permitindo a ação dela em alguns instantes e se esquivando em outros. de repente ela mudou o foco e tirou de dentro do preto um violão. ele tocou para ela, mas não era habilidoso. então foi a vez dela, que indiscutivelmente tocava bem. e aí, pasmem: gritaram da janela do prédio aqui do lado o clichê do clichê: toca Raul! e, ela procurou na sua pasta preta de músicas os acordes de "tente outra vez" e cantou em voz alta! os vizinhos aplaudiram e gritaram, a esta altura além de mim pelo visto havia uma platéia assistindo o casal.  no entanto eles ali seguiam. ele pegou o violão e ela se aproximava novamente dele, agora não com as mãos, mas com os ombros e cabeça. dançava ali sentada encostando os seus ombros no braço do violão, a cabeça encostando na cabeça dele, parecia uma gata quando pede carinho. mas o homem, este que já não sei distinguir se vive na rua por escolha antiga ou se cai pela cachaça, dissociado estava do carinho dela, da sedução ruiva e com ritmo. alcançou o violão para ela e foi virar de cabeça pra baixo na rua de paralelepípedo. ela guardou o violão. ele caiu de cabeça na rua, mas pôde ainda se levantar. até que o ônibus chegou e ele entrou. deixou ela, ela deixou ele. acabou a música. acabou a graça, a sedução. saio da janela, deito na cama, fecho os olhos e não quero mais ver nada hoje.