segunda-feira, setembro 01, 2014

pesadume

o dia estava abafado. dia de outono em que tudo indica que vai cair uma chuva no final mas ela não cai e fica mais e mais abafado, nuvens pesadas, pesados humores. eu saí de casa ainda com uma leve dor de cabeça insistente... devia ser das quatro taças de vinho que havia tomado no almoço em família. esqueci de dizer que trata-se de um domingo também abafado no íntimo. noite chegou nada de chuva e sim mais pesadume. pesar? sozinha em casa, cansei da solidão e fui pedalar. pedalei até o boêmio bairro da cidade. encontrei homens caídos pela rua e não deu pra saber se tratavam-se daqueles que decidiram viver na rua, ou se tomaram tanta cachaça e sem nenhuma condição de levantar dali. encontrei alguns amigos bebendo em uma bar. não quis ficar. o cheiro do cigarro e a cerveja depois da ressaca do vinho definitivamente me nocauteriam acelerando ainda mais o processo alergicorespiratório que me acompanha de tempos em tempos pelo excesso de fumaça e mudanças bruscas de temperatura. preferi seguir pedalando, aliás muitas vezes prefiro! segui encontrando pessoas bêbadas. um casal que discutia. um que falava sozinho. um grupo animado de jovenzinhos que gritava... é impressionante como em alguns dias o olho não vê a diferença, parece que se vicia no mesmo, na mesmice, na padronagem. quando é assim, quando cola uma imagem em mim, prefiro me retirar e ficar aqui comigo mesma no meu canto. de volta em casa, olhei pela janela e o meu olhar se sacudiu, vibrou: na parada de ônibus aqui de baixo vi ela e ele. ela uma garota ruiva de cabelos crespos e curtos. ele moreno de moleton, barba e chinelos. ela mexia no rosto dele com a mão, parecia querer que a sua mão tapasse todo o rosto dele, todas as expressões dele. todos os padrões dele. pegava com vontade, forte, massageando tudo: olhos, boca, nariz, bochechas e orelhas. ele se jogava pra trás permitindo a ação dela em alguns instantes e se esquivando em outros. de repente ela mudou o foco e tirou de dentro do preto um violão. ele tocou para ela, mas não era habilidoso. então foi a vez dela, que indiscutivelmente tocava bem. e aí, pasmem: gritaram da janela do prédio aqui do lado o clichê do clichê: toca Raul! e, ela procurou na sua pasta preta de músicas os acordes de "tente outra vez" e cantou em voz alta! os vizinhos aplaudiram e gritaram, a esta altura além de mim pelo visto havia uma platéia assistindo o casal.  no entanto eles ali seguiam. ele pegou o violão e ela se aproximava novamente dele, agora não com as mãos, mas com os ombros e cabeça. dançava ali sentada encostando os seus ombros no braço do violão, a cabeça encostando na cabeça dele, parecia uma gata quando pede carinho. mas o homem, este que já não sei distinguir se vive na rua por escolha antiga ou se cai pela cachaça, dissociado estava do carinho dela, da sedução ruiva e com ritmo. alcançou o violão para ela e foi virar de cabeça pra baixo na rua de paralelepípedo. ela guardou o violão. ele caiu de cabeça na rua, mas pôde ainda se levantar. até que o ônibus chegou e ele entrou. deixou ela, ela deixou ele. acabou a música. acabou a graça, a sedução. saio da janela, deito na cama, fecho os olhos e não quero mais ver nada hoje.

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