domingo, novembro 09, 2014

da carne livre da casa

pedalo pela plantação seca, roçada, novas safras virão, o trilho estreito no meio dela está molhado, os pneus da bici deslizam em zigue-zague, tenho que soltar o guidón o máximo possível, relaxar a fricção da mão sobre ele para que a bici não endureça e não resista à pequena trilha de barro seco. entre o asfalto e a estrada de chão eu prefiro a poeira e o cheiro de mato imanente da estradinha. vou procurando caminhos pelo trajeto, percebo muitas pedras de leito de rio na beira da estrada. seixos mesmo, elas me chamam, querem vir comigo? só depois que eu trouxer tabaco para colocar no seu lugar, oferecer às quatro direções, ao grande espírito.tirar uma pedra do seu lugar de origem é mexer no meio ambiente, é reconfigurar uma parte daquele solo, daquela costa de mato. pedalo entre pedras, eucaliptos, araucárias e vacas. penso na vida ali, no interior. avisto de longe, de cima do morro, o cemitério branco em meio à paisagem verde. o cemitério junto ao vilarejo e não apartado dele, como é de costume dos homens modernos-sem instintos-sem antepassados.o que fazemos dos nossos antepassados, enterramos naqueleterritório de túmulos, de lajes de pedra, de buracos para esconder a carne putrefada: um alimento para terra preso em um caixão de madeira, sem contato com ela (!). no entanto aqui, em Arroio do Ouro, interior da cidade onde nasci, o cemitério está bem perto do vilarejo, ele é presente no dia a dia de todos que vivem ali. chego mais perto.vou até o portão de entrada, não entro. o acesso é livre, não quis entrar sem uma pedra de quartzo rosa  na mão. fiquei um tempo ali na frente olhando a altura das estátuas, as cores dos mármores, as flores de plástico, a câmera mortuária que, semi-abandonada, guardava algumas cadeiras empilhadas e mais para o lado um pouco ainda haviam banheiro para 'ela' e 'ele' e uma placa com uma seta indicando a "galeria dos abandonados", dos sem caixão, dos sem madeira, da carne colocada direto na terra, da carne livre da casa.
dou meia volta, sigo pedalando, já é quase noite e, a trilha para a casa dos meus pais, semi impossível de ver; à noite as trilhas são para os iniciados e também para os abandonados. quero voltar com a pedra de quartzo na mão, passar um tempo ali_soltar o que está preso e que me separa da terra.
a utopia é liberada!

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