terça-feira, maio 29, 2012

quarta carta


Carta que integra o meu TCC da Especialização em Saúde Mental Coletiva e Residência em Saúde Mental Coletiva pelo Programa de Residência Multiprofissional do EducaSaúde/FACED/UFRGS. Carta lida no 7º Mental Tchê em São Lourenço do Sul, dia 18.05.12

Carta a uma psicóloga do SUS          

Penso muito sobre autonomia ultimamente, nessa autonomia pretendida e tão não experimentada nos serviços de saúde mental. Aliás o que é que se experimenta quando falamos em práticas clínicas atuais? Experimenta algo? Consegue-se extrair da loucura a vida que ela tem? Pode-se sentir a vontade de potência das relações ali envolvidas? Artaud, quando escreve a sua “carta ao papa” diz: “Em nome da Pátria, em nome da família, você promove a venda das almas e a livre trituração dos corpos...”, em contrapartida eu, aqui, te proponho pensar sobre isto: em nome de quê praticas tua clínica? Quais as intensidades e fluxos que emergem no teu corpo e na tua ética quando estás com o teu paciente/SUSuário? As tuas ações te afectam, te oferecem sentido para agires? Penso em clínica e me lembro da nossa última conversa onde tu com uma expressão de absoluto desânimo e desesperança me dissestes que a clínica oferece muitos limites...! Eu fiquei com vontade de te perguntar qual era o tipo de clínica que te referias, no entanto, entrou outra pessoa na sala e não seguimos o assunto. Por isto te escrevo agora, para continuarmos exatamente deste ponto: de qual clínica estamos falando?
 Primeiro vamos deixar claro que aqui eu não falarei por mim somente, mas falarei a partir de um ponto de vista e ele está associado a uma série de engendramentos que me colocam nesta posição, que marcam a minha história de vida até este ponto e a forma como eu vim parar aqui em frente a estas palavras. Falo de uma experiência individual, a qual supõe um meio aonde ela se concretiza, de um meio específico ou de um meio institucional e ético que a faça existir. Pois, o Ser e a sua relação com o mundo é o que faz com que ele de fato exista! Ninguém existe sem ter relação! Tendo em vista que respiramos já estamos nos relacionando e, esta para mim se trata da nossa mais fundamental relação - com o nosso próprio corpo.
Quem não possui uma envergadura interior suficiente para acolher e elaborar os seus afetos, como sinaliza Alfredo Naffah Neto no seu livro Outre’em-mim, tem muito medo do outro, tem verdadeira aversão ao que lhe é diferente, ao que se lhe apresenta utilizando linguagens e formas distintas. Quando temos medo não somos dignos do que nos acontece, como bem diz Nietzsche, pois qual é a vida que pode ser oferecida a quem desvia de tudo o que lhe acontece ou poderia acontecer? O próprio homem aprendeu a aprisionar a vida dentro de si, pois busca fixá-la em uma fisionomia real, dentro dos padrões da sociedade e com isto, desvia da vida necessariamente, a qual é fluidamente intensa e múltipla, a qual agencia encontros, se afeta de alegria e faz do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, mas que multiplica sua potência a partir de todos seus órgãos e sentidos, permitindo um constante movimento dos pensamentos, não mais somente os conscientes, mas de toda a ordem. Tudo que é vivo, que tem vida, possui movimento, está em movimento! 
Produzimos diariamente espaços com grades e paredes para nos escondermos e isto ocorre desde o período clássico, onde o homem passa a balizar sua conduta e existência pela, como chama Nietzsche, a “tão boa moralidade dos costumes”. O homem passou a perder a consciência do próprio corpo e trancafiou-se dentro do que estabeleceu como sociedade e cegou, em prol dela, para si mesmo, para o seu corpo, para os seus sentidos. Deleuze, no seu livro Diálogos, inspirado em Spinoza que traz o exemplo do carrapato, diz ele: “veja o carrapato, admire esse animal, ele se define por três afetos, é tudo o que ele é capaz em função das relações das quais é composto, um mundo tripolar e é só! A luz o afeta, e ele se iça até a ponta de um ramo. O odor de um mamífero o afeta, e ele se deixa cair sobre ele. Os pêlos o incomodam, e ele procura um lugar desprovido de pêlos para se enfiar sob a pele e sugar o sangue quente. Cego e surdo, o carrapato tem apenas três afetos na floresta imensa, e o resto do tempo pode dormir anos a fio esperando o encontro. Que potência, entretanto!”
Pois eu me pergunto: quais as potências que o homem contemporâneo se permite exteriorizar? Do que é que ele se alimenta? Quantas chaves você carrega diariamente na sua bolsa? De quantos desejos abrimos mão diariamente afim de, mantermo-nos dentro da lógica capitalística e das normas da sociedade? Quantas doenças ainda a gorda saúde dominante criará para que se precise de mais tratamentos invasivos? Quantos remédios são necessários para que toda a nossa plasticidade interna seja apaziguada e simplificada até o ponto em que nos tornemos homens calculáveis e etiquetados por preconceitos democratizantes?
Penso que aqui pode estar localizado o limite da nossa clínica – na própria incapacidade dos profissionais da saúde mental, em livrarem-se eles próprios da camisa de força social que habitam, da lógica ascética que cura, da paranóia da falta, da dívida com o que é justo e bom, com o “caráter sagrado do dever”.
Precisamos permitir que os sentidos façam a crítica da razão para que possa haver um encontro no setting terapêutico, seja ele na rua ou dentro de algum prédio com paredes. A atenção à saúde não pode tratar-se apenas de consumo de produtos de saúde! O diagnóstico é um encarceramento da sensibilidade, é uma prisão dos sentidos, uma ingênua limitação da loucura, uma pequena morte já! Todas as classificações da loucura com o passar dos anos sofrem alterações, pois de fato não se tratam das mesmas loucuras! Temos uma clínica que se fixou em certos modos de proceder baseados em teorias e determinações que devem ser repensadas, revisitadas e reposicionadas a todo o momento. O louco de hoje não é nem nunca será o louco de ontem! Aliás, somos todos um pouco loucos, mas não somos necessariamente doentes!
Para a doença existe a medicina, mas para a loucura precisamos de muitas outras ferramentas, pois ela é complexa demais para os diagnósticos e prescrições biomédicos - ela é rarefeita, sombria, cheia de nuances, agenciamentos e forças. Ela possui como diz Deleuze no seu livro a Lógica da Sensação, traços assignificantes (traços de sensação, livres, involuntários, ao acaso), é heterogênea, tem fluxo, possui o que Guattari chama de agenciamentos coletivos de enunciação; é inconsciente, transborda, transforma-se, desterritorializa, é intensiva, se afeta a partir da existência e muda seus códigos com a experimentação de si.
Afirmo que o limite desta clínica pré-determinada está na recusa de novos aliados, de outros modos de pensar a loucura e a doença mental, está em se manter escondido atrás de paredes com certificados pregados às paredes. Aliás, pregos são comuns em falas já cristalizadas num discurso vencido! A Arte é uma ferramenta dentro dos nossos serviços, pois ela, assim como a loucura, não tem limites para existir! Ela não se conecta com os ideais ascéticos da sociedade, bem pelo contrário, se permite viver intensamente o seu corpo e sua alma, não precisando para isto de preceitos morais e preconceitos democratizados. Arte e loucura produzem rupturas e descontinuidades, espaços entre as palavras e os diferentes tipo de corpos.
Enquanto essa conexão ainda não for reconhecida dentro dos serviços de saúde mental, os quais se mantém com o quadro de funcionários restrito nas áreas e sub-areas ditas da saúde mental, seguiremos cheios de limites na clínica, penaremos na mão das leis e determinações do Ministério Público, na mão dos sindicatos médicos e claro, na mão da indústria farmacêutica, a qual controla todas as agonias do corpo, dopando-o, deixando-o em silêncio, estancando as suas possibilidades de reinvenção de si, matando assim, aos poucos, toda a possibilidade de vida e de liberdade que a loucura nos oferece e pode ensinar!
Espero que esta carta seja apenas o início da nossa produção de pensamento acerca das estratégias que podemos desenvolver na Oficina de Expressão que felizmente me convidas para coordenar contigo no CAPS. Fico muito feliz que tenhas o discernimento da amplitude que somos trabalhando juntas.

Com carinho, tua parceira artista,

Carina.

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