segunda-feira, março 26, 2018

hora azul

acordei pronta para navegar o meu próprio ritmo, ouvindo o meu coração com fones que isolam o barulho externo, ouvindo o mar dentro, a multiplicidade enorme de virtualidades que se interpenetram e geram exatamente o impulso para a ação. existência pluralista. emoções em movimento, o movimento dos diferentes tons das emoções que não são possíveis de racionalizar por guardam um si próprias um que de obscuro, de irracional como quando o sol toca a pele e faz suar. tomei café e fui até a praça. onda de luz. hora azul. 

apachetas

A primeira impressão ao chegar no deserto é o silencio que ele tem.
O aeroporto mais próximo fica a 1:15h de distancia. Do aeroporto até a cidade no meio do deserto, se atravessa uma autopista gigante e quase sempre reta com nada de luz à noite e um silencio devastador. Não se vê nada além da pista à frente, é assustador! Não deixo de pensar que vi coisas que não estavam ali realmente. Aparições. Pensar que vi, soa alucinante, sim, eu estava alucinada com a extravagância da realidade visual que estava vivendo. Esta viagem noturna foi ao sair do deserto, em direção ao aeroporto, já no caminho para Santiago. Portanto saí do deserto, quase às cegas, com uma sensação de não ver mais nada além do que guardava dentro e a autopista sinistra e infinítica.  O motorista que nos leva até São Pedro do Atacama, de manhã cedinho quando chegamos conta-nos que as cruzes na beira da estrada que deixa tonto são dos que morreram no caminho, dos corpos que ficaram ali mesmo, geralmente de pessoas que dormiram na direção, que entregaram-se ao silêncio eternizante do deserto. Nunca mais falaram depois dele. 
Alias o que menos tenho vontade de fazer estando entre a cordillera de Domeico, entre esta natureza definitiva imponente é falar. As palavras, as imagens das câmeras, nada consegue demonstrar esta beleza chocante, que reduz o ar, a minha respiração,  que me põe a andar devagar, atenta ao solo, às crateras, ao embaixo desta terra árida mágica! Tem água, tem sal, tem evaporação, sais minerais, lava de vulcão: tudo selvagem, conservando uma certa estabilidade provisória, sorrateira, dura doce.
No meio do deserto fontes de água doce, transparente água, outras, escondidas, contém 23% de sal oque não permite que o nosso corpo afunde, flotamos! Géiseres, água quentíssima e mortal, saindo de dentro da terra, borbulhando quente. O ar é seco, sangra o nariz do amor, faz com que alguns corpos estejam muito mareados, outros nem tanto, todos andam mais lentamente. As pedras são companhias lúcidas e definitivas, são desde os primórdios incas usadas para agrade  Os atacameños andavam kilometros e kilometros por entre as cordilheiras e isso costumeiramente lhes causava fortes dores nos joelhos. É esta conexão com as reações do corpo que os levam a fazer uma ponte com o mundo do invisível.
As "apachetas" são construídas com pedras encontradas a beira do caminho e eram usadas como ferramenta para livrarem-se da dor nos joelhos. toda a vez que havia dor os atacameños relacionavam  uma das pedras encontradas no caminho, com sua pele, com o seu joelho, agradeciam por deixarem ali aquela dor e, equilibravam a pedra sob alguma apacheta que já existia ou iniciavam outra. A pedra, operando como um condutor elétrico, devolvia à terra a dor e a transmutava a dor em bem estar. As apachetas são verdaderias entidades de pedra, totens de desapego da dor.
Hoje todos os dias milhões de turistas visitam o Atacama e também constroem as suas apachetas eu própria construí a minha, ainda que sem dor no joelho, mas com dor no coração e pedi para que esta dor também fosse transmutada.
E foi! Nesta mesma noite eu chorei no deserto como uma criança ao perceber que não era mais possível manter a minha vida como ela estava. era preciso transformar espacialmente a minha realidade, eu precisava ganhar mais espaço. Modificar a minha paisagem, ainda que morando na mesmo cidade. Mudar de casa. Naquela noite eu chorei como não chorava desde a infância e fiz amor no chão, fiz amor como há muito tempo eu não fazia. Algo se fecha e se abre em si próprio, a dor ainda está aqui presente e eu gozo com ela em mim, com ela em cima de mim, embaixo, gozo por todos os lados e acordo antes do nascer do sol. Viva e desértica.